Por Maurício Simionato
Riaj era um ser candidato à reeleição e acabara de acordar naquela manhã chuvosa de sonhos agitados. Mas não intranquilos. Na verdade nem percebera que havia dormido por sete noites. Foi um sono pesado. Ao olhar no espelho, percebeu que sua pele estava viscosa e grudenta. Passou uma das mãos no cabelo e reparou que estes se tornaram derretidos fios envoltos em gosmas pegajosas.
Ele tinha de se banhar, mas decidiu que, dali em diante, não precisaria mais. Não seria mais necessário lavar aquele corpanzil branco e cilíndrico. Quase transparente. Percebeu que seus pés e mãos haviam desaparecido, mas não estranhou e nem ficou assustado. Achou tudo natural e passou a rastejar-se com prazer.
Pensou em comer um pão com leite condensado no café da manhã, mas não teve fome. Interessou-se mesmo por um pedaço de bife apodrecido que havia esquecido por meses no fundo geladeira. Mas não conseguiu abrir a geladeira.
Era um dia de eleições em Acujit ad Arrab, um povoado árabe invertido surgido no meio do pasto seco e ensolarado à beira do Mar Morto. Ele era candidato, mas não conseguira participar dos debates finais.
Ao rastejar-se até a sala por um corredor com quadros de Otirb Oremor, seu artista predileto, avistou por debaixo da porta sua mulher entrando apressadamente em uma Variant vermelha que estava estacionada na porta de sua casa. Ela estava exuberante como nunca. Nunca fora tão gostosa. Usava saltos altos azuis e um vestido verde e amarelo justíssimo a ponto de reparar que ela não usava calcinha.
O motorista, um sujeito careca, de bigode, óculos e envelhecido pela política barata, deu um sorrisinho no canto da boca antes de engatar a primeira marcha. Partiu cantando os pneus. Riaj achou estranho ela sair sem dizer o tradicional: “tchau Xuxuzinho”.
Riaj não se incomodou com a cena. Não tinha mais cabeça para isso. Na verdade queria mesmo era encontrar com seus asseclas, agora também seres rastejantes.
Seus sectários fizeram uma saudação ondular quando o viram deixar a porta da frente, rastejando como nunca. Havia se especializado nisso nas últimas horas. Finalmente havia assumido a sua natureza sem se incomodar. Era o destino, ‘e daí?’, pensou consigo mesmo.
Simplesmente não quis sair para votar e nem atender ao amontoado de repórteres que o aguardavam para uma entrevista bombástica na porta do condomínio oficial de Acujit ad Arrab.
Um dos seus últimos assessores especiais, que ainda tinha pequenos apêndices grudados ao corpo, conseguiu derrubar o aparelho de celular do chefe no chão do tapete da sala.
Uma mensagem de whatsapp acabara de chegar, dando como certa sua reeleição, segundo a última pesquisa de boca de urna. Ele ficou feliz, mas não conseguia mais sorrir. Na verdade, não parava de pensar no pedaço de carne podre que o aguardava na geladeira.
Sem perceber, algumas formigas haviam se aproximado dele, vindas do jardim e atraídas pelo odor de proteína vazia e fétida. Seus assessores fugiram rapidamente para o gramado da frente da casa e se esconderam em frestas. As formigas estavam famintas e o devoraram sem parar. Elas apenas cumpriam sua parte de se alimentar.
Foi tudo muito rápido. Ele se debatera um pouco até não conseguir mais existir. Conseguiu apenas visualizar, pela última vez, uma derradeira mensagem de whatsapp de seu grupo de correligionários que dizia: “Riaj é reeleito”.
Mas foi-se para sempre sem saber: era fake news.
Ilustração: desenho científico publicado em Zeitschrift für Parasitenkunde 2005
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