Por Marcel Cheida
O boteco raiz é o que interessa. O pé-sujo, o bunda-de-fora, o sujinho, aquele onde a estufa atrai olhares famintos para o ovo e a salsicha empanados, o croquete, a esfirra, a coxinha, o pastel, enfim, todo pedaço de gula cultivada desde a infância.
Balcão de bar é uma peça horizontal, às vezes esguia, cuja extensão revela de imediato o espírito coletivo, igualitário e democrático. Bar ou boteco sem balcão não tem espírito, é um espaço sem alma.
Quem frequenta boteco nem sempre se atenta para o balcão. Aquela peça que separa a cozinha ou a área de serviço do espaço da clientela. Mas, é fundamental para a conversa entre clientes, garçons, o caixa, o chapeiro e outros príncipes do boteco. Sim, porque quem trabalha nesse sublime comércio reina no ambiente, o nobre lugar, da coletividade esparramada por entre nichos e espaços aristocráticos. A clientela é a vassalagem, composta por aqueles que servem, de fato, a todos os operários do sujinho.
O balcão, geralmente, mede em torno de 1,10 cm de altura. O comprimento e a largura dependem da arquitetura desenhada para o ambiente, para o trato entre o chapeiro, os garçons, o commis, o responsável pela limpeza, entre outros. Para quem não sabe, commis é o nome dado ao auxiliar do garçom. O termo é mais usado em restaurantes, mas alguns botecos gourmet os tem.
Contudo, o boteco raiz é o que interessa. O pé-sujo, o bunda-de-fora, o sujinho, aquele onde a estufa atrai olhares famintos para o ovo e a salsicha empanados, o croquete, a esfirra, a coxinha, o pastel, enfim, todo pedaço de gula cultivada desde a infância.
Ou seja, boteco e farmácia são fontes de remédios para a alma e para o físico. E em ambas encontramos o balcão. Já as boutiques vestem a vaidade, com ou sem balcões.
Aí, uma diferença etimológica e cultural, contudo nobiliárquica. Boteco é palavra derivada de botequim, que, por sua vez, tem origem no italiano moderno, botteghino, que também gerou botica. É a mesma raiz para a francesa boutique, palavra Renascentista que designava um tipo de comércio no qual quase tudo se vendia. Inclusive medicamentos; eram as antigas boticas predecessoras das modernas farmácias. Ou seja, boteco e farmácia são fontes de remédios para a alma e para o físico. E em ambas encontramos o balcão. Já as boutiques vestem a vaidade, com ou sem balcões.
Bar, bem, a palavra deriva da mesma raiz de balcão. Bar room eram os balcões de madeira instalados em tavernas inglesas para servir bebidas e comidas. Tratava-se de uma barra estreita na qual os clientes se serviam de bebidas diversas.
Seja o boteco, seja o bar, ambos são espaços comerciais. E aí entra o espírito da coisa. A palavra comércio tem raiz nos termos latinos com, de comum, e merere, que significava “ganhar dinheiro”. É uma palavra de origem meio safada. Pois, merere é raiz etimológica tanto para meretriz como para mercadoria. A palavra commercium, na Roma antiga, também designava o ato da prostituição, ou seja, comercializar o sexo. À época, contudo, a prostituição era revestida do sagrado, pois praticada nos templos de deuses pagãos. Por isso, só quem tinha riqueza para pagá-las obtinha os favores sexuais protegidos pelos deuses.
De qualquer modo, o entrelaçamento desses termos é que faz do balcão um símbolo magistral da democracia. E da tradição milenar. Chegar ao bar ou ao boteco há o dever de se acomodar no balcão, onde todos os cotovelos são iguais, sejam eles sagrados ou pagãos.
Marcel Cheida é um adepto da botecofilia*.
*Botecofilia: neologismo que designa o desejo ou a paixão pelo boteco.
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