top of page
Buscar
Foto do escritorPolitica de Botequim

Só bebo Montilla se estiver vestido de paletó

Por Nelin Vieira.



Cheguei em São Luís, no dia 5 de dezembro de 1982. E, de maio de 1984 a junho de 1987, morei na pensão de dona Inês, no centro da cidade, onde a chefa da cozinha, era a piauiense Almerinda Alves da Costa. A eficiente cozinheira, foi “rebatizada” como “socióloga russa” Almerinda Sakharov Aragão, em homenagem ao dissidente soviético Andrei Sakharov (Prêmio Nobel da Paz em 1976), e à nossa conterrânea, a médica comunista Maria Aragão. Este “poderoso nome” foi dado pelo estudante e meu colega de quarto, Simeão Pereira e Silva (hoje, juiz de Direito em nosso Estado), ao perceber a desenvoltura daquela doméstica, que agia como se fosse encarregada do setor de psicologia jurídica, ou atuasse em alguma vara de família, da infância e adolescência, apaziguando os conflitos que surgiam na pensão – quase que diariamente – principalmente, entre as meninas.

Quando “algo acontecia”, imediatamente, ela deixava de lado suas inúmeras obrigações de ofício, para oferecer o ombro amigo, que servia de conforto para desabafos amorosos, confidências financeiras, desvendar fuxicos, e toda sorte de problemas que apareciam. Dava conselhos – e também gostava de passar carão, quando era preciso. Muitas vezes, presenciei a socióloga russa Sakharov Aragão, fazer o papel de “mãezona” para os mais jovens, que ainda não tinham superado o trauma – que todos nós sofremos – de, assim, do dia pra noite, perder a segurança da casa dos pais e ser jogado no mundo “inocente, puro e besta”, como dizia Raul Seixas, em sua belíssima canção, Sessão das dez, gravada em 1974.


Demorei pouco tempo para me vestir (houve um pequeno problema com o nó da gravata, que logo foi solucionado com o auxílio da nossa cozinheira, a socióloga russa Sacarov Aragão), e ao voltar pro meio dos colegas de pensão, já de paletó, pedi minha dose de Montilla.

E era exatamente naquelas horas, que a chefe da cozinha, Almerinda Alves da Costa, belíssimo exemplar de mulher da raça negra, oferecia o aconchego do seu colo, seus conselhos, e seu lenço de macia fibra de algodão, para secar os olhos daqueles “jovens aventureiros”, ainda empoeirados de saudades de casa, da família, dos amigos de infância, e também dos amores deixados em sua terra natal. E, para suportar essa “barra” (a maioria era de estudantes), todos os sábados, tinha uma turma que se reunia no quintalzinho da pensão, embaixo de um pé de abacate; e lá, a gente bebia, comia, ouvia músicas, discutia política, literatura; falava de mulheres, da vida alheia, e sempre tentava apaziguar os conflitos surgidos durante a semana. E assim, fora o desconforto e algumas restrições impostas pela dona da pensão, a nossa vida nos finais de semana era uma grande festa – e com muitos episódios, como este que passo a relatar.

No dia 22 fevereiro de 1986, às quatro horas da tarde, cheguei da rua e desci para tomar banho, pois iria ao casamento de um conterrâneo meu, o Vagner Lago, com Maria de Lourdes. Ao sair do banheiro, fui cumprimentar meus colegas (era sábado), e um deles (o Gonzaga da CAPEMI), ofereceu-me uma dose de Montilla. Na hora eu não aceitei. Mas para não parecer indelicadeza da minha parte, dei uma desculpa, dizendo-lhe o seguinte: – Olha rapaz, eu sou um homem sério, e Montilla, só bebo se estiver vestido de paletó. Espere-me só um pouquinho, que irei me aprontar e voltarei dentro de poucos minutos. Ao subir para meu quarto, percebi que todos ficaram atarantados com a minha resposta. E teve até um estudante de medicina, o Zé Bonitinho, que disse nunca ter visto uma pessoa com tanta formalidade para tomar uma simples dose de bebida.


Só bebo cerveja em copo de vidro “Nadir Figueiredo” e minhas roupas têm que ser lavadas com pedras de Anil Azul.

Como eu era o hóspede mais antigo da pensão – e eles tinham muito respeito por mim –, não insistiram para eu beber, como é muito natural nessas horas, em que sempre aparece um sujeito que já está alterado, e começa a dizer que você não quer beber, “porque é orgulhoso, enricou, não gosta de pobre; que está lhe desconsiderando, que lhe conheceu mais humilde e nunca esperava ser decepcionado por um amigo...”. Demorei pouco tempo para me vestir (houve um pequeno problema com o nó da gravata, que logo foi solucionado com o auxílio da nossa cozinheira, a socióloga russa Sacarov Aragão), e ao voltar pro meio dos colegas de pensão, já de paletó, pedi minha dose de Montilla, botei a mão no ombro do Cizé (filho da proprietária da pensão, dona Inês), e a cada gole que eu dava, dizia, o seguinte:

- Olha meus jovens e futuros doutores: além de eu ser um homem muito sério; de já ter dançado discurso, choro de menino e badalo de sino, e também ter dormido dentro de um pneu de Patrol, na Rodoviária de São Luís, quando vim fazer as provas para a Escola Técnica Federal, também sou bastante tradicionalista, pois, só:

– Bebo Montilla, se estiver vestido de paletó; / – Escovo os dentes com pasta kollynos; / – Uso sandálias Havaianas; / – Faço a barba com Gillet Azul; / –Tomo banho com sabonete Lux; / – Escrevo com caneta “Bic” escrita fina; / – Curo ressaca com Alkassetze; / – Deito em redes Mossoró; / – Deixo costurar minhas roupas com Linhas Correntes; / – Uso fósforo Pinheiro; / – Calço sapatos Vulcabráz; / Ando de bicicleta, se for Monark; / Bebo água em copo de alumínio Rochedo; / Uso pilhas Rayovac; / –Gosto de desodorante Mistral; / – Ouço músicas nas vitrolas ABC – Voz de Ouro; / – Só bebo cerveja em copo de vidro “Nadir Figueiredo” e minhas roupas têm que ser lavadas com pedras de Anil Azul.


Seu padre, eu confesso que não estou disposto / A passar o restante da minha vida de morto.

E, antes de pegar o táxi do meu amigo de infância, Jadiel do Euripinho, para ir ao casamento dos meus amigos, Vagner Lago e Maria de Lourdes, ainda recitei um trecho da minha poesia “Poucas respostas minhas”.

São muitas as perguntas / E poucas as respostas minhas.

Não durmo sem lençol / E nem como sem farinha.

Se me deitar muito tarde / Favor não me acordar de manhãzinha.

De tudo enquanto é enlatado / Só gosto de sardinha.

Não ando de elevador / porque a viagem é muito curtinha

E de todos os amores que tive / O melhor foi com a filha da vizinha.

Ao terminar o casamento, o padre “Capinha”, que era nosso conterrâneo (São Mateus do Maranhão), e filho do Oficial de Justiça, Capa Bode, ainda de batina, se juntou aos convidados, e no meio da animada confraternização, quando o reverendo (que apreciava uma boa bebida), começou a falar – novamente – em céu, paraíso, estar com Deus... eu pedi um aparte, porque queria mesmo era discutir assuntos da minha terra – e não misturar álcool com religião –, e lhe fiz a seguinte observação:

Seu padre, eu confesso que não estou disposto / A passar o restante da minha vida de morto

Procurando o endereço do céu. // Se vocês me derem a localização correta.

Prometo, que irei até de bicicleta / Vestido num gibão de couro – e de chapéu!



Nelin Vieira é jornalista e escritor são-mateuense.

38 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page